quarta-feira, 25 de junho de 2014

Mornas Inquietudes

  

Chove torrencialmente. Na rua transeuntes dispersam-se, o tempo mudou de humor, esbraveja trovoada. Passageiro temporal lava as ruas, chuva brava silencia.
Na calçada, uma mulher desce a ladeira, devagar para não cair. Leva, nas costas, o peso das preocupações impostas pela vida, ao encontro do Boulevard Café, pausa rotineira. Molhada pela chuva, no balcão faz seu pedido, na saborosa inquietude do desejo de degustar um café. Engole como se fosse o último, prazer apreciado aos poucos, assim como inquietudes inevitáveis, entre um e outro gole.
Olhares sutis despertam a cumplicidade. Homens de paladar apurado saboreiam a admiração. Entre os olhares, insinuante aceno. Um breve olhar ensaia a resposta do adeus. No Boulevard Café, o mesmo pedido, diferentes inquietudes, cúmplices olhares e um salutar café.
Na rua, a chuva silenciara. A mulher retoma o trajeto, com o fardo mais leve, deixando as preocupações à mercê do destino. O sol aparece tímido, alguns pássaros cantarolam, ensaiando um fim de tarde poético, de mornas inquietudes na passarela cotidiana da vida.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Sonho de Esperança


Numa manhã de verão de 1940, Esperança, que então tinha sete anos de idade, avistara o mar pela primeira vez. Fora um encontro inesquecível, cheio de surpresas agradáveis.
Sob os cômoros de areia, trilhava deixando pequenas pegadas. A cabeleira crespa esvoaçava, tocada pelo vento que soprava forte. Sentada na areia, admirava o mar, mergulhando em seus mistérios. Um olhar curioso, por trás dos olhos graúdos e negros, que mais pareciam jabuticabas. Vestia um vestido de chita amarela, e calçava sandálias de couro, surradas pelo tempo, que mal cabiam em seus pés. Franzina, esboçava um sorriso meigo que emoldurava o rosto com uma expressão angelical.
A menina viajara com o pai, em uma de suas viagens costumeiras pelo sertão nordestino, dentro de um pau-de-arara. Estava sendo levada para morar com os tios na capital, antes, suplicara para conhecer o oceano. Naquele instante inesquecível, concretizara um sonho pueril.
Recebera do mar, uma oferenda, uma grande concha rósea, a qual colocara ao lado do ouvido, tendo a gostosa sensação de ouvir a sinfonia das ondas.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Uma Carta para Mary John




Virgínia, 1941.

Chove aos cântaros, um aguaceiro jorra dos céus e deixa a cidade à mercê do mau tempo. Alguns moradores, assustados, ficam de vigília junto às janelas das casas. Ritualmente, acendem velas e rezam com um terço em mãos, invocando a proteção divina.
Após estiar a chuva, uma névoa fria cobre as ruas, sombrias e solitárias, e alastra-se pelo gueto, invadindo as vielas escuras e tornando-as assustadoras. No cenário entristecido pelo tempo, um gato preto desafia o perigo, pula de telhado em telhado, esgueira-se do limo sem resvalar, intrépido, em busca de algum vestígio de comida. Não era o único felino faminto, e por entre os latões de lixo depositados nos becos disputam espinhas de peixes, minguadas sobras do jantar. Miados histéricos e tampas voadoras são arremessadas ao chão, causam alvoroço na vizinhança. Portas e janelas abrem-se, simultaneamente, na curiosidade de retratar a cena. Assustados, os felinos fogem pelo breu da noite. A rua está deserta. O bar que costuma estar movimentado deixa-se sucumbir pelo resguardo. Passava das vinte horas, e em virtude da guerra, as pessoas recolhem-se cedo. Sob uma penumbra de luz, Mary John, a dona do bar, escuta atenta a notícia no rádio. É noticiada a queda de um avião perto da base de Pearl Harbor, abatido por um caça japonês, sem sobreviventes. Pela descrição do piloto, havia indícios de ser Robert, seu marido. A confirmação ocorreu logo em seguida, quando o locutor, pesaroso, confirma. Perplexa com o que escuta, deixa o copo cair das pequenas mãos que o enxugam. A face ligeiramente muda de cor, enquanto as lágrimas deslizam sob o rosto angelical. Finalmente compreende o silêncio da resposta esperada, a carta que não chegou às portas de casa. Havia deixado de escrever fazia algumas semanas, as mais longas e angustiantes.
Um mês antes haviam feito um piquenique no campo, à beira de um córrego. Foi numa manhã ensolarada, de céu de brigadeiro. Ela estendeu uma toalha sob a grama, embaixo de uma árvore centenária e frondosa, enquanto Robert, tomado pela curiosidade, espiava pela beirada da cesta os quitutes, deliciando-se com os olhos argutos, e beliscando às escondidas as uvas róseas. Naquele dia quente de verão, ficaram deitados na grama, rindo à toa e fazendo planos. Desejavam morar no campo e construir uma aconchegante casa de madeira. Fazer uma horta e plantar hortaliças, e, em torno da casa, muitos gerânios. Pensavam em criar cavalos e vacas leiteiras. E por fim, terem filhos, no mínimo três. Isso exigiria fôlego, riam ao imaginar, ao mesmo tempo em que ficavam pensativos. Agora, o homem que tanto ama está abandonado em alguma vala, como um dejeto.
Duas horas depois de ter recebido a notícia pelo rádio, o relógio cuco, que faz um frenético tic-tac, para. O silêncio é quebrado por um profundo suspiro. Mary John levanta-se numa atitude de resignação, recolhe os cacos de vidros esparramados pelo chão. Apanha a chave da velha camioneta Ford pendurada no balcão. Antes de sair, apaga as velas e fecha o bar, com a intenção de não retornar tão cedo. Destemida, sabia do desafio que a esperava: ser mulher da cor do ébano, viúva e dona de um bar.
Os últimos tempos juntos deixaram inesquecíveis recordações dos momentos agradáveis em família: as gafes da Tia Pérola no último jantar na casa dos pais de Robert, as flores que costumava receber na sexta-feira, o beijo matinal estalado, as histórias divertidas que Robert contava sobre o avô, as excentricidades mirabolantes que preparava na cozinha, o uísque duplo, um vício diário, que costumava beber no fim da tarde, sentado na varanda e ouvindo as músicas de Glenn Miller, os torneios de beisebol nas manhãs de domingo, quando Bob, o cachorro dinamarquês, filava a bolinha e não queria largá-la,  fazendo a família movimentar-se para tomá-la de volta e as cenas de ciúmes de Anne Claire, que terminavam em silêncio por alguns minutos.
No final de semana, antes de partir em viagem, fizeram uma visita aos pais de Robert que moravam na colina dos lobos. Um lugar aprazível, onde se respirava ar puro, com muitas cornus, árvores floridas típica da região.  Moravam num chalé aconchegante, no alto da colina, estupenda vista do vale e rodeado de flores. Enxergavam as vacas pastando, os imponentes cavalos de raça e cabritas saltitantes.
Enfileiravam-se próximas, outras cabanas vizinhas. Quando chegavam, quase sempre, eram surpreendidos por Anne Claire, uma moça que aparentava uns vinte anos, filha única de um casal de vizinhos, que cumprimentava-os, aproveitando para esbanjar olhares comprometedores a Robert. Mary John fingia não perceber, enquanto por dentro, remoía os ciúmes. Ao retornarem, ela arrancou rapidamente o carro, passando por cima de uma poça da água, deixando Anne cheia de lama e furiosa. Enquanto saía, ficou cuidando a reação através do retrovisor, se quer disfarçou, colocando a mão para fora do carro, sinalizando um “adeusinho”. Robert achou engraçado, ela preferiu silenciar-se, rindo por dentro e imaginando como deveria estar Anne, certamente brava, arrancando os poucos fios de cabelo loiro oxigenado.
Na última noite que ficaram juntos, abriram um vinho branco, e ficaram em frente a lareira em cima do tapete de lã de ovelha. Robert havia comentado sobre o desejo de trabalhar com o irmão em uma serraria que pretendiam construir no campo, nas terras do avô, seguindo o ofício dele. Enquanto falava, os olhos brilhavam e Mary John escutava atenta as histórias de conquistas do avô e o sonho de construírem uma história juntos.  Na madrugada, a despedida, um beijo longo e apaixonado, os dois se amam no tapete. No outro dia cedo, Robert tomaria o trem para apresentar-se no Quarto General.
Os dias seguem, marcados por ausências e vivas lembranças. Mary John fica preocupada ao ouvir rumores de saqueadores na cidade. Alguns, não se contentavam em roubar, matavam e estupravam friamente mulheres jovens. As vítimas negras, eram as mais abusadas, quando não, mortas. Daí em diante, passa a cuidar-se, e evitar andar sozinha ao escurecer. Fecha o bar mais cedo do que de costume. Numa noite, após ter fechado o bar, ouviu um barulho seguido de estilhaços de vidro, alguém tinha jogado uma pedra na janela, enquanto isso, a fechadura da porta era forçada. Alguém tentou entrar, e não conseguiu. Estava bastante contrariado, chutando a porta diversas vezes. Mary John escondeu-se atrás do balcão, e não foi para casa, dormindo ali mesmo, encolhida de frio. Depois do episódio, outros semelhantes se sucederam, o último, foi de maior gravidade, quando ao retornar para casa, encontrou-a invadida e saqueada. Os objetos pessoais de valor imensurável quebrados, as cortinas rasgadas, os móveis revirados e as poucas quinquilharias de valor subtraídas, entre elas, o relógio de bolso que tinha sido do avô de Robert. Haviam queimado parte da cozinha, por pura malvadeza, algo sem sentido, a não ser para quem tem muito ódio guardado no coração.
Meses depois, desperta a primavera alvissareira, com o desabrochar das flores perfumadas, dando cor e vida à paisagem pálida. Na rua, as árvores ficam enfeitadas, charmosas e coloridas, com os pássaros fazendo festa ao sugar o delicioso néctar. As cornus posavam ornamentadas para serem retratadas pelas retinas ambulantes na passarela cotidiana. Na varanda de casa, Mary John espreguiça-se sentada na namoradeira e ouve as notícias auspiciosas pelo rádio, enquanto lê um livro debruçada no aconchego do tempo, saboreia cada entrelinha com a fome da alma. Diverte-se com o enredo imaginando ser a protagonista da história.
 Aos poucos, volta a vibrar com as reações da natureza a volta, quando admira o pôr-do-sol no auge da beleza cálida. A esperança surge contagiante no horizonte da vida, respostas para os assuntos engavetados no armário das expectativas. Já era hora de abrir a porta da clausura, e deixar o sol entrar, extravasando ideias, sentimentos e dando cor aos sonhos. A   temperatura agradável e o sopro da brisa faz as pálpebras pesarem, e tomba levemente a cabeça para o lado, um cochilo interrompido pelo cumprimento do carteiro, que adianta-se, dizendo não ter correspondência.
O carteiro caminha alguns metros, a passos largos e assoviando, remexe na bolsa, quando encontra uma carta para Mary John. Ele retorna, desculpa-se, e a entrega. Com a carta em mãos, abre imediatamente.
A correspondência foi expedida pelo comando do Quarto General, convidando para um funeral simbólico e coletivo que seria realizado na próxima semana, já que muitos dos corpos não haviam sido resgatados. Por alguns minutos fica pensativa. Afinal, ele merecia um funeral digno, e até aquele momento, o comando havia se calado a respeito. As tentativas de resgate do corpo de Robert eram sempre frustradas pela impossibilidade. Mary John devolve a carta para o envelope, guarda-a na gaveta da mesa. A tristeza ensaia retornar ao semblante, quando o telefone toca. Sai às pressas para atender: era Pérola, a tia materna, convidando-a para o almoço no dia seguinte, quando comemoraria seu aniversário.
Ao desligar, vai até a cozinha e prepara uma torta de amora, a preferida de Pérola. Na cozinha, dispende um longo tempo aprontando-a para a estreia à mesa no dia seguinte. Pérola era glutona, vibraria com a torta. Enquanto imagina a cena, sorri, lembrando das trapalhadas da tia, dominada por atitudes megalomaníacas. A torta deveria ser grande, do tamanho do desejo. Ela adorava contabilizar gentilezas, registrando tudo, ou quase tudo, no diário que guardava embaixo do travesseiro.  Secreto e intocável, mas todos sabiam que estava lá. De uma forma ou outra, desejava que assim não fosse.
Algumas horas na cozinha e Mary John distrai-se entre as panelas enquanto beberica um licor de cassis. Sem perceber as horas, observa pela janela da cozinha a tarde se despedindo. Podia ouvir a revoada dos pássaros no entardecer e os gorjeios galanteadores. No céu azul cinéreo, uma nesga avermelhada, indícios de um porvir ensolarado. Mary John fecha as janelas da casa e liga o companheiro valvulado, o rádio, saboreando a nostalgia dos velhos tempos enquanto ouvia a música In The Mood, reportando-a a saudade de Robert. Uma lágrima foge ao controle. Pensava agora na carta, no funeral simbólico. Remexer na mácula era doloroso, mas preciso. Durante a noite, teve um sonho, do qual não queria acordar. Sonhou que havia encontrado Robert numa ilha paradisíaca. Estava bem, apesar dos ferimentos. Por alguns instantes conversaram, e, ao se despedirem, prometeu retornar para casa.
Dias depois, após um exaustivo dia de trabalho, Mary John retorna para casa dirigindo a velha camioneta que herdou do pai, quando para de funcionar. A parceira metálica a deixa, mais uma vez, em uma situação de perigo. Era incomum mulher dirigir, e muito menos, sozinha em uma estrada erma, um convite para salteadores à espreita. O radiador fumega, sem água, pois está furado. Depois de abastecer com água, um rapaz que passa pelo local de bicicleta, se dispôs ajudá-la. Ela aceita, apesar do desconforto.  Ele empurra a camioneta, quando pega no tranco. Quando chega em casa, aproveita o resto de tarde para plantar alguns gerânios no jardim dos fundos.
Bob late o tempo inteiro, provoca Meow, a gata amarela da vizinha, que passeia entre os canteiros de flores. Mary John desliza a mão no pelo macio de Meow, afagando a cabeça, enquanto ronrona, desliza o corpo fofo nas pernas dela. Bob está inquieto, late insistente. Já havia derrubado alguns vasos, estragado o tapete da porta de entrada, pois tinha o costume de roer, quando faltava um suculento osso para distrair-se. Sem compreender a agitação, atira uma bolinha de beisebol para distraí-lo. Imediatamente, ele a devolve. Depois de várias vezes, Mary John se cansa, e fica zangada com Bob que insiste por brincar.
Após terminar as atividades no jardim, vai até a cozinha e pega uma maça e a revista que está sob a mesa, e senta-se na escada da varanda. Distraída, ao folhá-la, ouve o farfalhar das folhas esparramadas pelo chão. Surpreende-se ao olhar, emudece e numa atitude de espanto, não consegue falar. Robert volta pra casa em um jipe dirigido por um soldado. Desembarca amparado por uma muleta, e somente nesse momento, Mary John percebe que não se trata de alucinação, Robert está vivo.  E corre na sua direção, com os olhos marejados, enquanto ele larga a muleta, e sob um pé só, abraça-a firmemente, por um longo tempo, interpelados pelo latir alucinado de Bob ao ver Robert, e um tanto saudoso pula no peito do dono fazendo festa.
Nas mãos, Robert traz várias correspondências que não havia conseguido despachar. Uma carta em especial, contando o que havia acontecido e quando deveria retornar. Tempo depois, descobriu que as cartas não haviam sido remetidas, e, sem explicação, retornaram para suas mãos. Estava em uma ilha do pacífico, sem comunicação e ferido, o que explicava o silêncio de Robert. No tempo de espera, o coração ficou angustiado, já não sabia como a encontraria. Quem sabe, casada com outro.
Semanas depois, Robert vende o bar, fechando um negócio estupendo, dinheiro o suficiente para realizarem o sonho tão almejado. Colocam as tralhas e Bob na camioneta, e mudam-se para a colina dos lobos, construindo a casa que haviam planejado durante anos.
Na varanda, o inusitado, a paisagem do grande canyon a perder de vista. Ao entardecer presenciam um espetáculo, quando o sol, lentamente, se põe. Olham para o horizonte alaranjado, desfrutando de um momento único e tão sonhado, enquanto Robert desliza a mão sob o ventre gestante de Mary John à espera do primogênito.



A melhor maneira de ser FELIZ com alguém é ...


Às vezes, a necessidade de ter alguém ao lado para fugir da solidão, acaba nos levando a uma infeliz escolha. O ideal é experimentar a solitude, aprender a ser feliz sozinho, para permitir-se em algum momento "escolher" alguém, evitando entrar em um relacionamento infrutífero apenas pela necessidade.
Não vale a pena desesperar-se por carência, caindo na própria armadilha.
Dê tempo ao tempo! Naturalmente, acontece.