Virgínia, 1941.
Chove aos cântaros, um aguaceiro
jorra dos céus e deixa a cidade à mercê do mau tempo. Alguns moradores,
assustados, ficam de vigília junto às janelas das casas. Ritualmente, acendem
velas e rezam com um terço em mãos, invocando a proteção divina.
Após estiar a chuva, uma névoa fria
cobre as ruas, sombrias e solitárias, e alastra-se pelo gueto, invadindo as
vielas escuras e tornando-as assustadoras. No cenário entristecido pelo tempo,
um gato preto desafia o perigo, pula de telhado em telhado, esgueira-se do limo
sem resvalar, intrépido, em busca de algum vestígio de comida. Não era o único
felino faminto, e por entre os latões de lixo depositados nos becos disputam
espinhas de peixes, minguadas sobras do jantar. Miados histéricos e tampas
voadoras são arremessadas ao chão, causam alvoroço na vizinhança. Portas e
janelas abrem-se, simultaneamente, na curiosidade de retratar a cena.
Assustados, os felinos fogem pelo breu da noite. A rua está deserta. O bar que
costuma estar movimentado deixa-se sucumbir pelo resguardo. Passava das vinte
horas, e em virtude da guerra, as pessoas recolhem-se cedo. Sob uma penumbra de
luz, Mary John, a dona do bar, escuta atenta a notícia no rádio. É noticiada a
queda de um avião perto da base de Pearl Harbor, abatido por um caça japonês,
sem sobreviventes. Pela descrição do piloto, havia indícios de ser Robert, seu
marido. A confirmação ocorreu logo em seguida, quando o locutor, pesaroso,
confirma. Perplexa com o que escuta, deixa o copo cair das pequenas mãos que o
enxugam. A face ligeiramente muda de cor, enquanto as lágrimas deslizam sob o
rosto angelical. Finalmente compreende o silêncio da resposta esperada, a carta
que não chegou às portas de casa. Havia deixado de escrever fazia algumas
semanas, as mais longas e angustiantes.
Um mês antes haviam feito um
piquenique no campo, à beira de um córrego. Foi numa manhã ensolarada, de céu
de brigadeiro. Ela estendeu uma toalha sob a grama, embaixo de uma árvore
centenária e frondosa, enquanto Robert, tomado pela curiosidade, espiava pela
beirada da cesta os quitutes, deliciando-se com os olhos argutos, e beliscando
às escondidas as uvas róseas. Naquele dia quente de verão, ficaram deitados na
grama, rindo à toa e fazendo planos. Desejavam morar no campo e construir uma
aconchegante casa de madeira. Fazer uma horta e plantar hortaliças, e, em torno
da casa, muitos gerânios. Pensavam em criar cavalos e vacas leiteiras. E por
fim, terem filhos, no mínimo três. Isso exigiria fôlego, riam ao imaginar, ao
mesmo tempo em que ficavam pensativos. Agora, o homem que tanto ama está
abandonado em alguma vala, como um dejeto.
Duas horas depois de ter recebido a
notícia pelo rádio, o relógio cuco, que faz um frenético tic-tac, para. O
silêncio é quebrado por um profundo suspiro. Mary John levanta-se numa atitude
de resignação, recolhe os cacos de vidros esparramados pelo chão. Apanha a
chave da velha camioneta Ford pendurada no balcão. Antes de sair, apaga as
velas e fecha o bar, com a intenção de não retornar tão cedo. Destemida, sabia
do desafio que a esperava: ser mulher da cor do ébano, viúva e dona de um bar.
Os últimos tempos juntos deixaram
inesquecíveis recordações dos momentos agradáveis em família: as gafes da Tia
Pérola no último jantar na casa dos pais de Robert, as flores que costumava
receber na sexta-feira, o beijo matinal estalado, as histórias divertidas que
Robert contava sobre o avô, as excentricidades mirabolantes que preparava na
cozinha, o uísque duplo, um vício diário, que costumava beber no fim da tarde,
sentado na varanda e ouvindo as músicas de Glenn Miller, os torneios de
beisebol nas manhãs de domingo, quando Bob, o cachorro dinamarquês, filava a
bolinha e não queria largá-la, fazendo a
família movimentar-se para tomá-la de volta e as cenas de ciúmes de Anne
Claire, que terminavam em silêncio por alguns minutos.
No final de semana, antes de partir
em viagem, fizeram uma visita aos pais de Robert que moravam na colina dos
lobos. Um lugar aprazível, onde se respirava ar puro, com muitas cornus,
árvores floridas típica da região.
Moravam num chalé aconchegante, no alto da colina, estupenda vista do
vale e rodeado de flores. Enxergavam as vacas pastando, os imponentes cavalos
de raça e cabritas saltitantes.
Enfileiravam-se próximas, outras
cabanas vizinhas. Quando chegavam, quase sempre, eram surpreendidos por Anne
Claire, uma moça que aparentava uns vinte anos, filha única de um casal de
vizinhos, que cumprimentava-os, aproveitando para esbanjar olhares
comprometedores a Robert. Mary John fingia não perceber, enquanto por dentro,
remoía os ciúmes. Ao retornarem, ela arrancou rapidamente o carro, passando por
cima de uma poça da água, deixando Anne cheia de lama e furiosa. Enquanto saía,
ficou cuidando a reação através do retrovisor, se quer disfarçou, colocando a
mão para fora do carro, sinalizando um “adeusinho”. Robert achou engraçado, ela
preferiu silenciar-se, rindo por dentro e imaginando como deveria estar Anne,
certamente brava, arrancando os poucos fios de cabelo loiro oxigenado.
Na última noite que ficaram juntos,
abriram um vinho branco, e ficaram em frente a lareira em cima do tapete de lã
de ovelha. Robert havia comentado sobre o desejo de trabalhar com o irmão em
uma serraria que pretendiam construir no campo, nas terras do avô, seguindo o
ofício dele. Enquanto falava, os olhos brilhavam e Mary John escutava atenta as
histórias de conquistas do avô e o sonho de construírem uma história
juntos. Na madrugada, a despedida, um
beijo longo e apaixonado, os dois se amam no tapete. No outro dia cedo, Robert
tomaria o trem para apresentar-se no Quarto General.
Os dias seguem, marcados por
ausências e vivas lembranças. Mary John fica preocupada ao ouvir rumores de
saqueadores na cidade. Alguns, não se contentavam em roubar, matavam e
estupravam friamente mulheres jovens. As vítimas negras, eram as mais abusadas,
quando não, mortas. Daí em diante, passa a cuidar-se, e evitar andar sozinha ao
escurecer. Fecha o bar mais cedo do que de costume. Numa noite, após ter fechado
o bar, ouviu um barulho seguido de estilhaços de vidro, alguém tinha jogado uma
pedra na janela, enquanto isso, a fechadura da porta era forçada. Alguém tentou
entrar, e não conseguiu. Estava bastante contrariado, chutando a porta diversas
vezes. Mary John escondeu-se atrás do balcão, e não foi para casa, dormindo ali
mesmo, encolhida de frio. Depois do episódio, outros semelhantes se sucederam,
o último, foi de maior gravidade, quando ao retornar para casa, encontrou-a
invadida e saqueada. Os objetos pessoais de valor imensurável quebrados, as
cortinas rasgadas, os móveis revirados e as poucas quinquilharias de valor
subtraídas, entre elas, o relógio de bolso que tinha sido do avô de Robert.
Haviam queimado parte da cozinha, por pura malvadeza, algo sem sentido, a não
ser para quem tem muito ódio guardado no coração.
Meses depois, desperta a primavera
alvissareira, com o desabrochar das flores perfumadas, dando cor e vida à
paisagem pálida. Na rua, as árvores ficam enfeitadas, charmosas e coloridas,
com os pássaros fazendo festa ao sugar o delicioso néctar. As cornus posavam
ornamentadas para serem retratadas pelas retinas ambulantes na passarela
cotidiana. Na varanda de casa, Mary John espreguiça-se sentada na namoradeira e
ouve as notícias auspiciosas pelo rádio, enquanto lê um livro debruçada no
aconchego do tempo, saboreia cada entrelinha com a fome da alma. Diverte-se com
o enredo imaginando ser a protagonista da história.
Aos poucos, volta a vibrar com as reações da
natureza a volta, quando admira o pôr-do-sol no auge da beleza cálida. A
esperança surge contagiante no horizonte da vida, respostas para os assuntos
engavetados no armário das expectativas. Já era hora de abrir a porta da
clausura, e deixar o sol entrar, extravasando ideias, sentimentos e dando cor aos
sonhos. A temperatura agradável e o
sopro da brisa faz as pálpebras pesarem, e tomba levemente a cabeça para o
lado, um cochilo interrompido pelo cumprimento do carteiro, que adianta-se,
dizendo não ter correspondência.
O carteiro caminha alguns metros, a
passos largos e assoviando, remexe na bolsa, quando encontra uma carta para
Mary John. Ele retorna, desculpa-se, e a entrega. Com a carta em mãos, abre
imediatamente.
A correspondência foi expedida pelo
comando do Quarto General, convidando para um funeral simbólico e coletivo que
seria realizado na próxima semana, já que muitos dos corpos não haviam sido
resgatados. Por alguns minutos fica pensativa. Afinal, ele merecia um funeral
digno, e até aquele momento, o comando havia se calado a respeito. As tentativas
de resgate do corpo de Robert eram sempre frustradas pela impossibilidade. Mary
John devolve a carta para o envelope, guarda-a na gaveta da mesa. A tristeza
ensaia retornar ao semblante, quando o telefone toca. Sai às pressas para
atender: era Pérola, a tia materna, convidando-a para o almoço no dia seguinte,
quando comemoraria seu aniversário.
Ao desligar, vai até a cozinha e
prepara uma torta de amora, a preferida de Pérola. Na cozinha, dispende um
longo tempo aprontando-a para a estreia à mesa no dia seguinte. Pérola era
glutona, vibraria com a torta. Enquanto imagina a cena, sorri, lembrando das
trapalhadas da tia, dominada por atitudes megalomaníacas. A torta deveria ser
grande, do tamanho do desejo. Ela adorava contabilizar gentilezas, registrando
tudo, ou quase tudo, no diário que guardava embaixo do travesseiro. Secreto e intocável, mas todos sabiam que
estava lá. De uma forma ou outra, desejava que assim não fosse.
Algumas horas na cozinha e Mary John
distrai-se entre as panelas enquanto beberica um licor de cassis. Sem perceber
as horas, observa pela janela da cozinha a tarde se despedindo. Podia ouvir a
revoada dos pássaros no entardecer e os gorjeios galanteadores. No céu azul
cinéreo, uma nesga avermelhada, indícios de um porvir ensolarado. Mary John
fecha as janelas da casa e liga o companheiro valvulado, o rádio, saboreando a
nostalgia dos velhos tempos enquanto ouvia a música In The Mood, reportando-a a
saudade de Robert. Uma lágrima foge ao controle. Pensava agora na carta, no funeral
simbólico. Remexer na mácula era doloroso, mas preciso. Durante a noite, teve
um sonho, do qual não queria acordar. Sonhou que havia encontrado Robert numa
ilha paradisíaca. Estava bem, apesar dos ferimentos. Por alguns instantes
conversaram, e, ao se despedirem, prometeu retornar para casa.
Dias depois, após um exaustivo dia de
trabalho, Mary John retorna para casa dirigindo a velha camioneta que herdou do
pai, quando para de funcionar. A parceira metálica a deixa, mais uma vez, em
uma situação de perigo. Era incomum mulher dirigir, e muito menos, sozinha em
uma estrada erma, um convite para salteadores à espreita. O radiador fumega,
sem água, pois está furado. Depois de abastecer com água, um rapaz que passa
pelo local de bicicleta, se dispôs ajudá-la. Ela aceita, apesar do
desconforto. Ele empurra a camioneta,
quando pega no tranco. Quando chega em casa, aproveita o resto de tarde para
plantar alguns gerânios no jardim dos fundos.
Bob late o tempo inteiro, provoca
Meow, a gata amarela da vizinha, que passeia entre os canteiros de flores. Mary
John desliza a mão no pelo macio de Meow, afagando a cabeça, enquanto ronrona,
desliza o corpo fofo nas pernas dela. Bob está inquieto, late insistente. Já
havia derrubado alguns vasos, estragado o tapete da porta de entrada, pois
tinha o costume de roer, quando faltava um suculento osso para distrair-se. Sem
compreender a agitação, atira uma bolinha de beisebol para distraí-lo.
Imediatamente, ele a devolve. Depois de várias vezes, Mary John se cansa, e
fica zangada com Bob que insiste por brincar.
Após terminar as atividades no
jardim, vai até a cozinha e pega uma maça e a revista que está sob a mesa, e
senta-se na escada da varanda. Distraída, ao folhá-la, ouve o farfalhar das
folhas esparramadas pelo chão. Surpreende-se ao olhar, emudece e numa atitude
de espanto, não consegue falar. Robert volta pra casa em um jipe dirigido por
um soldado. Desembarca amparado por uma muleta, e somente nesse momento, Mary
John percebe que não se trata de alucinação, Robert está vivo. E corre na sua direção, com os olhos
marejados, enquanto ele larga a muleta, e sob um pé só, abraça-a firmemente,
por um longo tempo, interpelados pelo latir alucinado de Bob ao ver Robert, e
um tanto saudoso pula no peito do dono fazendo festa.
Nas mãos, Robert traz várias
correspondências que não havia conseguido despachar. Uma carta em especial,
contando o que havia acontecido e quando deveria retornar. Tempo depois,
descobriu que as cartas não haviam sido remetidas, e, sem explicação, retornaram
para suas mãos. Estava em uma ilha do pacífico, sem comunicação e ferido, o que
explicava o silêncio de Robert. No tempo de espera, o coração ficou angustiado,
já não sabia como a encontraria. Quem sabe, casada com outro.
Semanas depois, Robert vende o bar,
fechando um negócio estupendo, dinheiro o suficiente para realizarem o sonho
tão almejado. Colocam as tralhas e Bob na camioneta, e mudam-se para a colina
dos lobos, construindo a casa que haviam planejado durante anos.
Na varanda, o inusitado, a paisagem
do grande canyon a perder de vista. Ao entardecer presenciam um espetáculo,
quando o sol, lentamente, se põe. Olham para o horizonte alaranjado,
desfrutando de um momento único e tão sonhado, enquanto Robert desliza a mão
sob o ventre gestante de Mary John à espera do primogênito.