E
difícil imaginar um jardim sem elas, as borboletas. Alegres, periclitam para um
lado e outro, despreocupadas, desapegadas, ao mesmo tempo, apegadas à vida. Simbolizam
a renovação e liberdade, e levam a inspiração além do tempo.
Com
uma xícara de café nas mãos, degustando-o gole por gole, saboreando o prazer
daquele momento, distraída, observava pela janela, as crianças brincando na
calçada.
Distante
da cena, mas ainda observando, puxei a cadeira, e me sentei. Por um momento
fiquei prostrada de saudades, lembrando-me da minha infância. Foi então que
submergi no passado, e me vi pulando amarelinha na frente de casa, pulando
corda com as meninas na escola, jogando três marias, jogo da velha, etc. O jogo
da velha costumávamos jogar em sala de aula, uma folha que dançava, indo para frente e retornando, assim passeava em nossas mãos, enquanto a
professora se distraía em seus amontoados de papéis. E de vez enquanto, era surpreendida
com o nosso burburinho, quando nos observava com os óculos na ponta do nariz,
em silêncio, virando a cabeça, até sermos contidas pelo olhar nada satisfeito,
momento em que nos recolhíamos, escondendo o sorriso matreiro. Era bem
divertido!
Sentimento
de culpa, nem pensar! Ser uma menina arteira, dava o que falar. E quando minha
mãe precisava ir à escola, era aquele verbete na ponta da língua. A professora não
perdoava nas reuniões de entrega das avaliações.
Em
casa, minha mãe cobrava meu comportamento.
Nada falava, somente baixava a cabeça e retornava para o meu “mundinho
da lua”. O tão falado e popular desvio de atenção,
ou déficit.
O
que havia de tão especial neste mundinho da lua? As fantasias? E quais seriam?
Nem lembro mais, mas na época, teria condições de responder o que tanto
pensava. Adianto que era um mundo irreal. Buscava nas viagens a fantasia. Com certeza não era a geometria, o português, os plânctons,
o mundo admirável das artes e seus Quixotes de la Mancha. Não! Também não eram
fadinhas e príncipes encantados. Era só o meu mundinho, particularmente meu.
Território indevassável e inconfessável, no auge da imaginação, onde se proliferavam todas as magias possíveis, desde o mago Merlim até inconsistente diálogo com o
mundo oculto, o além.
Falava
pelos cotovelos, sozinha. Olhava no espelho e batia um longo e gostoso papo. Eu
e mais eu, quando ninguém estava olhando, é claro.
Debruçava-me
sobre a mesa, ensejando escrever alguma coisa. Rabiscava alguns desejos e vap-vupt, voltava a terra, conectando-me
com o real. E quando isto acontecia, empurrava o papel para o lado. Fechava a
porta do quarto e ia brincar. Brincar de ser eu, menina tímida, de cabelos
loiros e olhos verdes. De vez enquanto, levava uns petelecos da gurizada na
escola que adoravam implicar com meu estilo certinho de ser. Detestava tudo
aquilo, mas não levava muito a sério.
Às
vezes, apelava ao colega Waldemar, a proteção. Tinha uns 16 anos, senão mais.
Era afrodescendente, altura mediana, um pouco acima do peso, mas ágil. Tinha os
cabelos encaracolados, que mantinha bem aparado. Era dono de um largo sorriso,
branco, que reluzia em contraste com sua tez negra. Era homossexual, porém
reprimia toda sua faceirice. E sempre nas horas difíceis, do empurra-empurra, tomava
as dores das meninas. Quando o assunto era proteção, Waldemar levantava-se da
cadeira, e com a mão espalmada, batia pra valer nos meninos. Nós ríamos aliviadas,
nosso anjo de ébano nos protegia.
Um
dia, caminhando pelos corredores da escola, um menino veio ao meu encontro,
correndo, fugindo de um outro colega que queria pegá-lo. Brincadeira da época,
pega-pega. Vinha contudo, quando passou por mim, e sem querer atingiu fortemente
o estômago. Hummm, que dor, bem lá, na boca do estômago. Jamais esqueci tal
cena! Vi estrelas por alguns segundos.
Pior
eram os dias que éramos obrigados a beber Padrax em pó contra vermes. Que coisa ruim!
Os
dias eram sempre monótonos e calmos. Tranquilidade que apaziguava as emoções. Nada de extraordinário preenchia aquelas manhas pálidas. O bom de tudo
é que vivíamos numa época mais tranqüila, sem grades, alarmes, violência e
pedófilos à espreita. Tínhamos liberdade de ir e vir, sem nos preocuparmos com
potentes malfeitores escondidos com perfil de “homem bonzinho”.
Podíamos
ao menos, viajar pelas nuances de uma vidraça, e nos perdemos lá fora, no
jardim, observando lindas borboletas, principalmente as raras, as azuis, a
pousarem nas flores.
Borboleteávamos à vida, libertando a
alma!
I.Ladvig